“A Guiné tem um presidente que realmente tem muita influência”


in:DN
A ministra de Estado e dos Negócios Estrangeiros da Guiné-Bissau, Suzi Carla Barbosa, esteve em Portugal e, em entrevista ao DN, destacou o sucesso da reintegração do país na comunidade internacional desde que Umaro Sissoco Embaló tomou posse como chefe de Estado.


As recentes visitas que o presidente Umaro Sissoco Embaló fez ao Brasil e também à Bélgica, esta última na dupla condição de visita ao país e à União Europeia, significam que depois de anos conturbados a Guiné-Bissau está a normalizar as suas relações internacionais e quer mostrar que voltou plenamente à comunidade internacional?
Sem dúvida. Eu quero destacar que foi a primeira visita de Estado ao Brasil de um chefe de Estado guineense, e penso que esta visita se destacou em relação às visitas de Estado que têm sido feitas ultimamente ao Brasil pela logística e pelo aparato. Em relação à União Europeia, devo salientar que há mais de 30 anos que um chefe de Estado guineense não fazia uma visita oficial à UE e ao reino da Bélgica. O presidente Umaro Sissoco Embaló foi recebido tanto pelo rei como pelos presidentes das instituições, nomeadamente o presidente do Conselho Europeu e o presidente do Parlamento Europeu, e pelos comissários que eram de maior interesse para a Guiné-Bissau, entre os quais o das Pescas. A Guiné-Bissau tem o terceiro maior acordo de pescas da UE, logo a seguir à Mauritânia e a Marrocos. Isto tem um peso muito importante na nossa economia e no nosso Orçamento Geral do Estado, e também porque era extremamente importante irmos para renegociar o PIN (Programa Indicativo Nacional), que já nos dois últimos exercícios não tinha sido assinado devido à situação de instabilidade na Guiné. Agora temos a assinatura do PIN, que englobará os próximos sete anos de cooperação com a UE, prevista provavelmente até ao final do ano.
Falou também da importância da visita ao Brasil. Houve algum tipo de acordo de cooperação com o Brasil que tenha sido assinado?
Enquanto ministra dos Negócios Estrangeiros, assinei na ABC (Agência Brasileira de Cooperação) vários protocolos de acordos na área da saúde, que é uma área prioritária, e que englobam apoios no combate ao HIV-sida, que são projetos que já existiam e que nós renovámos, mas sobretudo na criação de centros de hemodiálise, que foi a grande preocupação do presidente da República. A Guiné-Bissau não tem um único centro de hemodiálise em funcionamento e o Brasil prontificou-se a mandar equipas técnicas à Guiné-Bissau para formar nessa área, mas sobretudo também para doar centros de hemodiálise ao nosso país. Isso foi bastante impactante, mas os acordos assinados foram também na área da capacitação. Assinámos acordos para a criação de uma academia militar, que não existia; para renovar a terceira fase da academia de formação das forças de segurança e da polícia, que já existia e está numa terceira fase, e também para a criação de uma academia da diplomacia. Eu visitei, na altura, a Academia Rio Branco, com a qual vamos assinar em breve um acordo para a formação dos diplomatas guineenses e também para a criação da academia diplomática da Guiné-Bissau.
Nessa sequência de deslocações , há também a deslocação aos Estados Unidos, no âmbito da Assembleia-Geral da ONU. E houve aí um importante ponto de fricção que foi a conversa com a Administração Biden sobre a extradição do general António Indjai. O próprio presidente Embaló teve uma posição de choque com a comunidade internacional, neste caso com os EUA…
O que aconteceu foi o seguinte: o presidente da República é, antes de mais, o garante da Constituição. Assim, o presidente informou simplesmente a embaixadora dos EUA nas Nações Unidas, Linda Thomas-Greenfield, que é uma amiga pessoal dele de há muitos anos – já se conheciam porque ela foi embaixadora dos EUA na Gâmbia -, que no artigo 43.º da Constituição da Guiné-Bissau está muito claro que nenhum cidadão guineense pode ser extraditado para ser julgado no estrangeiro.
O nosso presidente informou que está disposto, isso sim, a fazer o julgamento do cidadão António Indjai na Guiné-Bissau, sempre e quando a Administração Biden nos apresente provas do porquê desse julgamento. Porque até hoje nós não tivemos nenhuma notificação oficial. O que nos informam é que é um processo que ainda está em andamento e que assim que ficar concluído nos informam.
De qualquer forma, os EUA suspeitam de envolvimento em narcotráfico, inclusivamente até têm um prémio de captura.
O que nos surpreendeu. Nós, enquanto Ministerio dos Negócios Estrangeiros, mandámos uma nota a pedir uma satisfação à Embaixada dos EUA em Dacar, que cobre também a Guiné-Bissau, porque, enquanto governo, não recebemos nenhuma notificação da Administração americana.
Não tem conhecimento da recompensa de cinco milhões de dólares?
Não há nenhuma comunicação oficial por parte dos EUA. Quando solicitamos um esclarecimento, o que nos respondem é que não há uma comunicação oficial porque é um processo que ainda está em andamento.
O facto de os EUA não terem uma embaixada em Bissau, ao contrário do que acontece, por exemplo, com a China, foi também falado?
Foi, sem dúvida. Porquê? Porque até dada altura os EUA tinham uma embaixada na Guiné-Bissau. Aquando do conflito de 7 de junho de 1998, abandonaram a Guiné-Bissau e estabeleceram só a embaixada em Dacar com cobertura de Bissau, o que não nos pareceu correto.


Desde essa altura, não voltaram?
Não voltaram, e o presidente da República fez questão de dizer que não lhe parece bem que a Guiné-Bissau tenha sido abandonada pelos EUA num momento de conflito, quando outros países, como a China, a Rússia, a França, se mantiveram. Sobretudo porque entendemos que são importantes a presença e o apoio dos EUA para o combate a esses movimentos de narcotráfico que tanto dizem existir na Guiné.
Não fizeram nenhuma promessa de reabertura da embaixada?
Não. Disseram que é um dossiê que está em avaliação, mas que não têm previsão de quando é que poderiam fazer essa reabertura.
Também muito falada foi a vossa sugestão para que São Tomé assumisse a presidência da CPLP, o que, inclusivamente, gerou elogios à vossa generosidade diplomática. Qual é a relevância deste gesto?
Na verdade, contrariamente ao que foi dito, não houve uma proposta da Guiné de atribuir a presidência da CPLP a São Tomé. O que a Guiné-Bissau disse, e foi essa a mensagem do presidente da República, Umaro Sissoco Embaló, foi que, no caso de haver um consenso da parte dos demais chefes de Estado de que seria São Tomé, ele estaria disposto a apoiar essa posição. Porquê? Porque, no sentido de garantir a harmonia no seio da nossa comunidade, ele estaria disposto a acatar essa decisão. Jamais houve uma proposta da Guiné-Bissau como foi veiculado na comunicação social. Eu digo isso porque fui eu que falei em nome do presidente Umaro Sissoco Embaló e manifestei a vontade dele de continuar a integrar a comunidade, de respeitar essas regras da comunidade e, caso fosse o entendimento coletivo de que realmente seria São Tomé, ele estaria disposto a aceitar. Ora, não houve ainda uma decisão porque essa é tomada a nível de chefes de Estado e não a nível ministerial. Por isso mesmo é que me surpreende que na comunicação social saia a decisão de que será São Tomé que vai presidir, quando, na verdade, não houve decisão. Esta é tomada pelo país que está a presidir, neste caso Angola, mas a nível do chefe de Estado, e não a nível do Conselho de Ministros.
Isso significa então que a Guiné assumirá a presidência seguinte?
Não, não significa que a Guiné assumirá, porque, como digo, isto resulta de uma consulta a todos os chefes de Estado. Finalizada essa consulta, é feita a comunicação. Eu não posso dizer, neste momento, qual será a decisão. Agora, também é certo que no final da nossa reunião do Conselho de Ministros, realizada à margem da Assembleia-Geral, em Nova Iorque, não houve uma conclusão nem houve um comunicado final alegando que seria São Tomé que iria assumir. Houve, sim, a posição da Guiné de que estaria disposta a aceitar a posição coletiva caso o entendimento coletivo fosse realmente que seria São Tomé a presidir.
Um tema muito atual é o combate à covid-19. Portugal tem apoiado os países da CPLP, fornecendo vacinas. Qual é o ponto da situação neste momento na Guiné?
Posso afirmar que a Guiné tem cobertas 70% das necessidades de vacinas para o público-alvo. Portugal contribuiu com 100 mil unidades através de dois lotes, mas também outros países, como os EUA, deram 305 mil, a China deu 300 mil em diferentes lotes, a Suécia deu 28 mil… Em termos de vacinação, já conseguimos vacinar 10% da população e temos capacidade de vacinar nos próximos dias mais 10%. A grande dificuldade tem sido a logística, por causa da conservação dessas mesmas vacinas para poder chegar às regiões interiores, mas tem corrido bem e, sobretudo nos últimos tempos, após o surgimento desta variante Delta, as pessoas estão muito mais consciencializadas e têm estado a aderir à vacinação.
As notícias que vão de Portugal, de ser um caso de sucesso na vacinação, influenciam a disposição dos guineenses para se vacinarem?
Eu penso que são realidades diferentes, mas não deixa de ser bom uma motivação, porque continuamos a estar muito ligados a Portugal, continuamos a ter muitos familiares em Portugal e há bastante sensibilização para a parte portuguesa. Nós acompanhamos lá as notícias e isso pode, sem dúvida, influenciar de certa forma a vacinação.
A comunidade guineense em Portugal está praticamente toda vacinada, como, de resto, todos os que vivem em Portugal. Neste momento o que é que pode dizer sobre a comunidade? Como é que ela está integrada? Há a situação, aliás, de haver três deputadas na Assembleia da República de origem guineense. Isso é a prova de que a comunidade guineense tem sido um caso de sucesso na integração em Portugal?
Sem dúvida. Penso que Portugal é o país onde a comunidade guineense está mais bem integrada, não só pelas nossas raízes culturais e históricas comuns, como é, sem dúvida, o país onde talvez o guineense se sinta mais em casa fora da Guiné-Bissau. Eu digo isso com a consciência de quem viveu aqui 20 anos e digo muitas vezes que sou produto da mistura da cultura guineense e da portuguesa. A prova é a integração destas três deputadas. Para nós, é a demonstração de que há realmente uma perfeita integração, e penso que é um exemplo a forma como a comunidade guineense está integrada. Também acho que há um esforço tanto da parte de guineenses como de portugueses para que essa integração seja realmente efetiva. A prova disso é a estratégia que está a ser feita agora através da Secretaria de Estado das Comunidades, do Ministério dos Negócios Estrangeiros, para que se possa efetivar ainda mais esta integração e para que os guineenses que aqui estejam e queiram regressar tenham as condições para que, indo para a Guiné-Bissau, possam beneficiar da contribuição que deram aqui em Portugal enquanto imigrantes.
Fez todo o sistema de ensino português e voltou. Um desafio para a Guiné é, muitas vezes, convencer guineenses que se formem em Portugal a regressar ao seu país…
Por isso mesmo é que nós temos agora esta estratégia da SEC para motivar as pessoas. No meu caso, fiz todos os estudos em Portugal, vivi aqui 20 anos – na verdade, estive 30 anos na Europa -, mas fiz questão de regressar e dar a minha contribuição. Nunca fui bolseira, não tinha aquele dever moral de regressar por ter estudado com uma bolsa, pois estudei com os meios da minha família, mas pensei que seria muito mais útil na Guiné-Bissau do que aqui na Europa, onde há milhares de pessoas com a mesma formação. Eu acho que posso ser uma fonte de motivação para quem vê que pode regressar ao seu país, ter êxito e ascender a cargos de relevância.
Recentemente, a região onde a Guiné está integrada, o espaço CEDEAO, tem tido golpes de Estado, primeiro no Mali e agora na vizinha Guiné-Conacri. Em que é que isto afeta a pequena Guiné-Bissau?
Contrariamente ao que tem acontecido nesses países, a Guiné-Bissau teve no passado situações de golpe, mas, neste momento e pela primeira vez, começa a ser parte da solução. A Guiné-Bissau era um dos países envolvidos, e eu, enquanto ministra dos Negócios Estrangeiros, participei no processo de mediação da transição do Mali. Nós eramos um dos países que estavam a acompanhar o processo de transição quando houve o primeiro golpe, depois houve um segundo e a verdade é que é lamentável que no espaço CEDEAO continue a haver golpes militares. Entendemos que qualquer desvio da ordem constitucional por via militar não é exemplar. Infelizmente, o que aconteceu recentemente em Conacri foi uma situação lamentável, mas vou aqui repetir as palavras do meu presidente quando houve eleições em Conacri – e cada país é livre de ter as suas decisões internas -, que referiu várias vezes que um terceiro mandato, mesmo com a alteração da Constituição, corresponde a um golpe de Estado, porque ele entende que se há uma Constituição há que respeitá-la. O facto de se ter alterado a Constituição de Conacri na altura pode ter sido a motivação para este golpe de Estado, mas a posição imediata da Guiné-Bissau foi condenar esse golpe. Nós, logicamente, somos contra os golpes militares e apoiamos o roteiro que foi aprovado pela cimeira da CEDEAO para que haja de imediato um retorno à normalidade constitucional.


Nasceu no ano da proclamação da independência pelo PAIGC.
Sim, 1973.
Recentemente, no 48.º aniversário, o presidente fez um discurso em que falou dos tempos de fracasso…
… E agora da geração do concreto, que é o lema dele.
Como ministra, e já vem de anteriores governos, sente que o seu país, depois da guerra de 1998, dos sucessivos golpes, das mortes violentas de chefes de Estado-Maior e até de um presidente, finalmente vai construir o futuro que ambiciona?
Eu vou dar um exemplo muito concreto. Realmente disse, e bem, que eu não estou pela primeira vez no governo, esta é a quarta vez. Estive no anterior governo antes das eleições presidenciais, como ministra dos Negócios Estrangeiros, e, talvez pelo desempenho, o presidente entendeu que tinha confiança política para continuar a integrar este novo governo, o que eu aceitei porque estou aqui para servir a Guiné-Bissau. O país esteve esquecido, esteve fora do mapa. Isto é uma metáfora, mas eu digo isso porque durante muitos anos não iam chefes de Estado à Guiné-Bissau, o país praticamente não era falado e quando era falado era por crises sucessivas. Pela primeira vez, a Guiné-Bissau deixa de estar na agenda por esse motivo e é falada como um país que é visitado. Nos últimos 18 meses, desde a tomada de posse do presidente Umaro Sissoco Embaló, visitaram a Guiné-Bissau 13 chefes de Estado. Este é um número recorde, ainda para mais quando falamos de tempos de pandemia. Esses chefes de Estado que nos visitaram foram personalidades de destaque – tivemos a visita do presidente em exercício da CEDEAO, do presidente em exercício da União Africana e do presidente em exercício da UE, do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, sendo que há mais de 30 anos que um chefe de Estado português não ia à Guiné-Bissau. São números que realmente impactam. Mais, durante toda a pandemia em Portugal, o único chefe de Estado que veio a Portugal numa visita oficial foi o presidente Umaro Sissoco Embaló. Eu penso que isto traduz que há realmente uma mudança, que a Guiné-Bissau passa a estar realmente no mapa e passa a ser parte integrante das relações internacionais. E durante este processo do golpe militar em Conacri, vários chefes de Estado, nomeadamente o presidente francês, Emmanuel Macron, estavam em constante contacto com o presidente Umaro Sissoco Embaló, porque ele tinha condições de aceder ao coronel Doumbouya e tinha informações muito recentes sobre a situação em Conacri. Isso demonstra que, pela primeira vez, a Guiné tem um chefe de Estado que realmente tem muita influência.
De que forma isso ajuda o país?
É um homem de relações, é um homem que tem contactos a nível mundial, e o facto de ter este carnet d”adresses, como dizem os franceses, tem ajudado muito a Guiné-Bissau. Por isso voltamos a ser consultados sobre as questões da sub-região, coisa que não acontecia há anos, e, mesmo a nível de ministros, tive a sorte de nestes 18 meses receber a visita de vários ministros dos Negócios Estrangeiros de países que normalmente não visitam a Guiné-Bissau. Recebi o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia e agora farei uma visita oficial à Rússia no próximo mês de outubro. Tivemos a visita do vice-ministro dos Negócios Estrangeiros de Espanha e fiz uma visita a Espanha neste ano. Receberemos o ministro da Arábia Saudita, o ministro da Turquia, de países que antes não iam à Guiné, quando muito éramos nós que viajávamos até esses países. Pela primeira vez são eles a visitarem a Guiné-Bissau, pois acreditam que estamos numa fase de estabilidade e que há possibilidades também de investir no país e tê-lo como um parceiro estável